terça-feira, 24 de maio de 2011

Paul McCartney




Uma sensação estranha acontece quando aos trinta e poucos anos, você tem certeza que acabou de assistir o show mais significativo da sua vida. Estou descendo a rampa do Engenhão nessa já madrugada de segunda e ouvindo um coro uníssono de pessoas abraçadas, encantadas, cantando os intermináveis Na na na nas de Hey Jude. Acabo de sair do Show do Paul McCartney!



A música, você sabe, sequestra nossos sentimentos e os arquiva para sempre. Um acorde pode disparar lembranças longínquas, impressões confusas, cenas traumáticas, acidentes e desilusões, o medo e os amores, o cheiro da adolescência. O tempo passa, mas o passado permanece congelado dentro das músicas que (talvez contra nossa vontade) mapearam a nossa vida. E la estava toda aquela multidão, compartilhando de alguma forma muitos desses sentimentos.




Uma coisa e ouvir as centenas de bandas cover ganhando a vida tocando Beatles, outra coisa e você ir ao estádio e ver UM BEATLE tocando as próprias composicoes. La estava ele, Sir Paul McCartney! Nao importa se você acha que o segredo do universo esta codificado nos acordes de Yesterday, se você e do time de Dear Prudence ou se Something resume o ideal de paixão a ser vivida. O fato e que além de espetáculo extraordinário (um dos mais tocantes que vi na vida), um show de Paul McCartney desperta todo tipo de impressão e lembrança num público que une jovens e adultos, crianças e avós. As canções pop, essas cápsulas de sensações, se adaptam ao temperamento de quem as ouve. No caso dos Beatles, que escreveram algumas das mais queridas do século 20, esse efeito de catarse ganha o poder de um fenômeno natural incontrolável. São as músicas que nós escolhemos (ou que nos escolheram) para encapsular as nossas memórias, trechos das nossas vidas.



Durante o show, me peguei tentando adivinhar o que Blackbird representava para a menina de 13 anos que acompanhava os movimentos do ídolo com uma câmera digital. Qual era o sentido que ela impregnou àquela canção? Depois, notei um quarentão tirando os óculos para secar lágrimas que caíam durante Something. Qual teria sido o poder daquela canção naquela pessoa? Não sei. Possibilidades infinitas.


Quanto a mim, já acusei o primeiro golpe na primeira musica: Hello Goodbye. Tinha estudado, feito o dever de casa esperava Magical Mistery Tour pra abertura. Quando fui surpreendido por Hello Goodbye, a casa caiu!



Desde o início do concerto, foi se construindo o elo entre o homem de 68 anos que entrou no palco e aquele rapaz corretinho de Liverpool que, nos anos 60, interpretou as músicas que me fizeram amar uma banda pela primeira vez na vida. Parecia uma ponte no tempo, a sensação de saber que aquele homem era o dono, o criador e tinha todo o direito de reavivar uma canção como Drive My Car, que deveria existir apenas nos nossos discos, nos nossos cérebros, nas nossas fitinhas antigas e gastas.



Aconteceu que o show começou a fazer sentido com tanta velocidade que me engasguei, perdi o ar. Foi durante Drive my car, uma canção não tão pungente quanto Yesterday ou Something ou Hey Jude, mas que, para mim, soou fatal. Soou como um estrondo. Quando as milhares de pessoas começaram a cantar em coro, aconteceu o milagre: eu estava novamente no meu quarto, ouvindo Rubber soul numa noite de sábado. Senti ate a temperatura da cama, mas todo o Engenhão estava lá e eram bem vindos.


O segundo golpe veio com Blackbird. Paul vai ao centro do palco, a banda se recolhe e sozinho, ele é acompanhado apenas pelo dedilhado de violão. O público reconhece a música e grita. Mas é a voz de Paul que flutua sobre o coro. A confusão está feita: quem canta a música? O Paul de hoje ou de ontem? O que aconteceu com o tempo? Por que aquela canção que ouvimos tantas vezes voltou a nos tocar? Antes que eu tentasse responder qualquer uma dessas perguntas, chorei mais uma vez.



Chorei sem saber por que eu chorava. Depois tentei entender. Mas tai algo que, horas depois do show, ainda me parece um tanto misterioso.




O show de Paul é simples o suficiente para permitir que entremos nele. Não nos afasta; nos abraça. Não é maior do que as nossas memórias – está à mesma altura delas, ele as envolve. O único momento de pirotecnia (em Live and let die) soa mais como um exorcismo (nossa catarse explodindo em fotos de artifício) do que mera demonstração de poder e dinheiro. Estamos em outro mundo. Não somos ingênuos, entendemos a máquina milionária que opera um show cujo repertório se repete, até de forma previsível, noite após noite. Mas aceitamos o jogo, precisamos do jogo, o jogo nos alimenta: Paul nos conduz a esse túnel largo onde confrontamos nossa própria história e o passado da música pop. La estamos nos, com ele.



La pelas tantas, onde o tempo já havia parado de fazer sentido, veio o golpe fatal: Paul empunha uma guitarra e diz: "Peguei essa guitarra porque foi nela que gravei essa próxima musica". Comeca Paperback Writter. Pronto, era a prova que eu precisava. Tudo fazia sentido! Aconteceu mesmo! Existe uma guitarra, Paul e de verdade e ele gravou a musica junto com mais três rapazes numa década longínqua....



Hey Jude começa, Paul e seu piano psicodelico no meio do palco, tocando os Na na nas que tanto repetimos pela vida afora, fazendo agora um coro com o compositor que um dia achou que o verso "the movement you need is on your shoulder" nao fazia sentido.... O publico levanta balões e cartazes com NA NA NA NA escrito e Paul se emociona. Um homem que viveu tudo o que viveu se emociona com uma manifestacao da plateia. Estamos juntos, Paul!!!!




Yesterday, a musica que definiu a musica pop e talvez a carreira de Paul e depois, Paul, com toda autoridade do mundo pergunta: "You wanna rock?" e manda Helter Skelter. Musica do White album, meu favorito! Musica que na adolescencia me fez ver o Paul virar "macho" naquele baixo e quebrar tudo! Sgt Peppers e The End



Um senhor de 68 anos com energia de sobra, um show sem pirotecnias, sem ,alçapões sem trocas de roupas, sem dancarinos, sem bla bla bla .... Paul sabe o que importa, Paul esbanja simpatia e sabe que a musica fala e sempre falou mais alto em nossos coracoes.



Venho descendo a rampa do Engenhao, emocionado. Seguro firme na mao da minha esposa, evito olhar pra ela pra nao mostrar que estou chorando de novo (O show acabou, a hora de chorar ja foi....) e la vamos nos... Ela sabe que eu vi o melhor show da minha vida e eu sei que ela viu o melhor show da vida dela. Que bom que estavamos juntos. Que bom que fomos!